“Há muita solidão, mesmo dentro das famílias”

Fev 5, 2019

É no meio da agitação da cidade que funciona o “Gabinete de Escuta”. Instalado na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, bem perto do Marquês de Pombal, está aberto a todos, independentemente da sua condição social, sexo ou religião. Fernando Sampaio, padre, psicólogo, e coordenador nacional das capelanias hospitalares, foi um dos impulsionadores do Gabinete. Sabia bem, das suas atividades diárias, que fazia falta um serviço assim. “A ideia de criar o ‘Gescuta’ surgiu da perceção que uma série de capelães, e outras pessoas ligadas à saúde, tinham da necessidade de criar um espaço onde as pessoas pudessem ir conversar, serem escutadas, face a pequenas dificuldades. Somos escutadores”.

O modelo seguido foi o que já conhecia de Espanha, onde é feita formação nesta área com os padres camilianos. Por lá já existem “mais de 30, não gabinetes, mas ‘Centros de Escuta’, quer ligados aos camilianos, quer ligados a igrejas ou a associações”, diz à Renascença. E lá, como cá, não há só sacerdotes envolvidos. “Há psicólogos, psiquiatras, pessoas que são formadas para o efeito. Esse é um aspeto muito importante, a formação específica para se fazer relação de ajuda”.

Mas, o que é afinal o “Gabinete de Escuta”? Não é um confessionário, mas também não é um consultório médico. “A relação de ajuda não é uma relação entre profissional de saúde e doente”, explica a psiquiatra Margarida Neto, coordenadora técnica do projeto.

“O que nós pretendemos fazer é uma escuta ativa perante um problema, um sofrimento, uma angústia que a pessoa nos apresenta, com confidencialidade, obviamente. A relação de ajuda é devolver à pessoa a sua capacidade de, por ela mesma, encontrar a solução para os seus problemas. Isto chama-se uma relação de ajuda. Não somos nem conselheiros, nem psicólogos, nem psiquiatras, e perceber isto é muito importante”, acrescenta.

“É verdade que o Gabinete está numa igreja, porque nos cederam o espaço, mas sempre o imaginei no meio de um centro comercial”, confidencia esta responsável, para quem é óbvia a necessidade que as pessoas hoje têm de conversar, de ser escutadas. “Num mundo de novas tecnologias, tenho para mim que há cada vez mais dificuldade nas pessoas serem ouvidas”. E há cada vez mais solidão e isolamento social.

Sandra Chaves Costa é outra das responsáveis pelo “Gabinete de Escuta”. Com mestrado em “counselling”, também recebeu formação específica em Madrid. É uma das seis pessoas que semanalmente se predispõe a escutar quem procura este serviço. E, em dois anos e dois meses, já foram muitos. “Desde a abertura, em novembro de 2016, até dezembro de 2018, o ‘Gescuta’ recebeu 251 contactos iniciais, que resultaram no acompanhamento de 167 pessoas”, avança à Renascença. As mulheres foram quem mais procurou ajuda. “Foram cerca de 80%, mais de dois terços tinham 55 anos ou mais, e 44% estavam acima dos 65 anos”. Eram na maioria casadas, em situação de reforma, em 14% dos casos estavam em situação de viuvez.

Mas, houve um dado que os responsáveis do Gabinete não esperavam. “Verificámos, com alguma surpresa, que cerca de 40% das pessoas que nos procuraram tinham um grau de licenciatura académica. Como o apoio é gratuito, poderíamos pensar que quem recorreria a este serviço seriam pessoas mais carenciadas do ponto de vista financeiro, e até com menos habilitações literárias. Não foi esse o caso”.

“Há solidão dentro das próprias famílias”

Os problemas que levam as pessoas até ao “Gescuta” estão devidamente identificados. “Um terço das pessoas que nos procuraram foi por problemas de ansiedade, stress, angústia, tristeza ou depressão, resultado de alguma situação traumática no relacionamento com outras pessoas. O segundo problema foi o de índole espiritual –

crises existenciais com perda de sentido para a vida, ou questões relacionadas som situações de doença, luto, solidão e depressão, com forte desinteresse pela vida, especialmente numa população mais idosa”, revela ainda Sandra Chaves Costa.

O padre Fernando Sampaio lembra que à medida que se envelhece muitos destes problemas juntam-se. “É o fim da carreira, as questões do ‘o que é que eu vou fazer agora?’, ‘para que serve agora a minha vida?’, no fundo um certo desânimo e angústia face ao futuro”. Já Margarida Neto diz que tem atendido “alguns problemas relacionais, e uma certa solidão dentro da própria família. Os conflitos calados, onde fica um ressentimento, as pessoas novas que chegam à família, os genros, as noras. As pessoas muitas vezes não têm espaço mesmo para conversar”.

Sempre que o problema tem outros contornos, do foro psicológico, reencaminham. “Na questão da depressão, da tristeza mais pesada, de que tenho apanhado alguns casos, pergunta-se sempre se vai ao psiquiatra, ou psicólogo, se já disse ao médico de família. Muitas vezes sim, mas já apanhei pessoas que se queixam de não haver tempo nas consultas, ‘Eu não falo disto com o meu médico’, dizem. É uma pena as pessoas não se sentirem escutadas. Muitas vezes fica-se pelos remédios”, lamenta a médica. “Também já tenho ouvido isso, que a pressa da consulta não permite que a pessoa desabafe os problemas”, acrescenta o padre Fernando Sampaio, que reconhece que mesmo em relação aos sacerdotes também há queixas de “falta de tempo” para ouvirem quem os procura. “Nem sempre ao nível de Igreja a pessoa encontra espaço para ser escutada. Aqui encontra isso”.

“O Gabinete mudou a minha vida”

Eneida Garcia, de 60 anos, professora de língua portuguesa, foi uma das beneficiárias do “Gabinete de Escuta”, que procurou num momento de maior fragilidade, em 2017. Atualmente a viver no Brasil, aceitou falar-nos sobre a sua experiência. Diz que a ajuda que recebeu fez toda a diferença na sua vida. “Posso dizer que existe uma Eneida antes e uma Eneida depois do ‘Gabinete de Escuta’. Eu sou uma pessoa muito cuidadora, e nessa minha necessidade de cuidar do outro, eu confundia muito o meu ser com a minha função em relação às pessoas que eu cuidava, principalmente os meus netos. Quando eu perdi essa função, é como se tivesse havido um esvaziamento do meu ser, perdi-me de mim mesma e acabei entrando em depressão. No Gabinete aprendi a substituir as expectativas que colocava sobre o outro, pelas perspetivas que coloco em mim mesma. Houve uma mudança muito significativa no meu modo de encarar a realidade”.

“Passei a conhecer as minhas limitações e, principalmente, a ver as possibilidades que se poderiam realizar no presente. Tenho uma gratidão muito grande, foi uma ajuda fundamental na minha vida”, sublinha esta professora brasileira. Como católica, considera que faz todo o sentido a Igreja ter criado este serviço, que não esquece a dimensão espiritual das pessoas.

“Esse acompanhamento é de fundamental importância. Não sendo necessariamente um confessionário, é um lugar em que você fala, sabe que está sendo acolhida, escutada, acompanhada, e ao mesmo tempo tem esse apoio espiritual. Essa força que vem de Jesus foi fundamental para eu me reencontrar, para recuperar minhas forças e seguir em frente. A minha qualidade de vida nem se compara antes e depois do ‘Gabinete de Escuta’. Dei um salto de qualidade de vida, de perspetiva, de fortalecimento da minha fé e da minha espiritualidade”.

Os responsáveis do Gabinete reconhecem que esta é uma marca diferenciadora do serviço. Fernando Sampaio sublinha que acolhem as pessoas “na sua totalidade, naquilo que trazem. E naturalmente trazem as suas angústias, dificuldades, e muitas vezes os seus problemas também de natureza espiritual. Até problemas de natureza religiosa, já tenho escutado alguns. E isso é importante porque, no fundo, estão a procurar força interior, a buscar o rumo”.

Também Margarida Neto considera muito importante ter em conta a espiritualidade. “É contemplarmos uma dimensão da pessoa que muitas vezes não é coberta em mais nenhum sítio de atendimento, e que é bastante diferente do catequético ou do religioso. A espiritualidade entendida como propósito de vida, sentido da existência. É para nós um ponto muito importante, e as pessoas também vêm por isso”. A duração do acompanhamento é variável. “Duas ou três conversas, às vezes só uma, pode fazer a diferença na vida de uma pessoa”, sublinha.

Num centro comercial, ou numa carrinha móvel, o “Gescuta” quer crescer

Eneida Garcia soube do “Gabinete de Escuta” por uma amiga, mas muitos dos que ali chegam “são enviados por paróquias, e até centros de saúde”, diz Fernando Sampaio, o que prova a necessidade deste serviço, que deverá ser alargado ainda este ano. “Temos um desejo enorme de crescer, de nos tornar grandes, de fazer formação para que se junte mais gente, e ao mesmo tempo estamos a tentar criar uma associação que se chamará ‘Gescuta’”, adianta o sacerdote, que gostava de conseguir dar resposta a todos os pedidos, que crescem sempre que se publicita o serviço. “Queremos que quando as pessoas pedem a resposta não demore tempo. Não queremos listas de espera”.

Para Sandra Chaves Costa crescer será inevitável, tendo em conta a procura que vai aumentando nas periferias de Lisboa. “Já são cerca de 20% das pessoas que nos contactam, mas que nem sempre têm disponibilidade para se deslocar para tão longe. Portanto, crescer vai permitir chegarmos mais facilmente a essas pessoas”.

“Uma coisa bonita que acontece em Madrid é que eles têm uma carrinha que tem um escritório interior, e deslocam-se junto das pessoas para fazer escuta. Essa carrinha até já veio a Portugal”, acrescenta o padre Fernando. Já para Margarida Neto “o Centro comercial continua como sonho!”, diz, porque para si faz todo o sentido ter o serviço disponível onde haja muita gente, mas nem por isso menos solidão.

O “Gabinete de Escuta” está disponível das 9h00 até às 19h00 através do número 964 400 675, ou do email gescuta@gmail.com. Sandra explica que é por estes meios que “podem fazer a solicitação de acompanhamento”, e alguém devolverá a chamada para o contacto que deixarem, mediante o dia de preferência que for indicado. “Temos escalados dias por cada um de nós os seis, o que quer dizer que de segunda a sábado, seis dias por semana, estará sempre alguém disponível para acolher as pessoas que nos procuram”, garante.

O padre Fernando lembra que este é um trabalho voluntário. “Todos nós somos profissionais noutras áreas, e dispomos de algumas horas por semana para este serviço, mas temos uma espécie de grelha com as nossas disponibilidades, e vamo-nos ajustando à disponibilidade também de quem nos procura”.

O “Gabinete de Escuta” do Patriarcado de Lisboa funciona na igreja do Sagrado Coração de Jesus, na rua Camilo Castelo Branco, nº 4, ao Marquês de Pombal.