O sofrimento – a importância no narrar e na escuta

Van Gogh, Velho a sofrer (No limiar da eternidade)
O sofrimento é uma parte integrante da existência humana, e atravessa a vida de todos nós. Todos o conhecemos e, no entanto, temos dificuldade em traduzi-lo por palavras, já que sendo uma experiência subjetiva assume em cada um, e em cada momento, diferentes expressões e intensidades.
Reconhecemo-lo nas suas várias dimensões — física, psíquica, social e espiritual… —, embora elas muitas vezes se intersetem e se sobreponham. Diversas disciplinas como a medicina, a psicologia, a sociologia, a teologia, a ética e a filosofia fazem a abordagem do sofrimento sob várias perspetivas, existindo até alguma controvérsia nesses diferentes olhares, o que revela a complexidade do tema.
Perspetivas que merecem toda a atenção pela sua grande importância e relevância, mas aqui mencionamos o sofrimento como vivência. A vivência dessa experiência subjectiva que referimos e que é desencadeada muitas vezes por uma mágoa, uma ferida no nosso ser, uma perda ou ausência, seja ela de que natureza for (de saúde, de alguém, de um reconhecimento, de exclusão social, de desamparo e solidão…) e que expressamos com diversas emoções como a angústia, a tristeza, a melancolia, a culpa, o medo e a raiva.
O modo como as expressamos refletem as circunstâncias pessoais, a nossa história e as do ambiente em que nos inserimos com todos os fatores sociais, culturais e espirituais.
Mas o sofrimento não é apenas emocional e existem fatores fisiológicos, que interferem e são importantes no modo como cada pessoa o experiencia.
O estudo das neurociências é hoje um grande contributo para melhor entendermos a complexidade da dor e do sofrimento. Todos conhecemos o trabalho de investigadores como António Damásio, e a relevância que dá ao conceito de unidade corpo-mente, contestando a dualidade que referia Descartes, bem como a sua explicação para a base biológica dos processos mentais em constante interação. Os estudos, utilizando meios como a ressonância magnética funcional, permitem hoje identificar estruturas no cérebro que estão ligadas às nossas emoções, mas também à resiliência e à vulnerabilidade à dor e ao sofrimento. E não estamos a falar apenas de dor física, uma vez que é conhecido que chegando por vias diferentes ao cérebro, a dor física e a dor mental convergem aí nos mesmos locais. Referimo-nos sobretudo às estruturas constituintes do sistema límbico, essa extensa rede neuronal vital para inúmeras funções da mente e ao córtex pré-frontal.
As emoções ligadas ao sofrimento não correspondem a um transtorno mental, mas necessitam da nossa atenção porque o sofrimento é muitas vezes difícil de narrar.
O sofrimento é traduzido ao nível do nosso fácies e mesmo da nossa expressão corporal, e ainda muitas vezes somatizado em sinais físicos. Na imagem, máscara maconde. Foto: Direitos reservados.
O sofrimento é traduzido ao nível do nosso fácies e mesmo da nossa expressão corporal, e ainda muitas vezes somatizado em sinais físicos. Na imagem, máscara maconde. Foto: Direitos reservados.[/caption]

O sofrimento é traduzido ao nível do nosso fácies e mesmo da nossa expressão corporal, e ainda muitas vezes somatizado em sinais físicos. Na imagem, máscara maconde. Foto: Direitos reservados.
Pode existir essa incapacidade de o narrar de modo verbal; no entanto, ele é traduzido ao nível do nosso fácies e mesmo da nossa expressão corporal, e ainda muitas vezes somatizado em sinais físicos. Quantos de nós, ao olharmos alguém próximo, não captámos já sinais de sofrimento ou os identificámos em nós? Sinais na mímica facial, no aumento de sudorese, no tremor ou sinais a nível de comportamento como a diminuição da atenção, o isolamento, a diminuição com o cuidado pessoal, a redução ou o aumento de peso, as insónias ou hipersónias…
Perante todo o sofrimento importa que ele seja percebido, lido nos sinais com que se manifesta em nós e nos outros; e esse processo de atenção facilita a sua narrativa, facilita nominá-lo.
Narrar o sofrimento permite reconhecer e aceitar a sua existência na vida; mas essa aceitação não significa que se é passivo em relação a uma situação. Narrar é já um apelo à ajuda que permite iniciar um caminho para o diminuir. O pior sofrimento, aquele que mais dói, é aquele que se desintegra do nosso eu, do que somos e do que vivemos, ou seja, da nossa identidade.
Podemos narrar o sofrimento a um elemento da família, a um amigo e, noutras vezes, quando ficamos assoberbados e não o conseguimos processar, pode até ser necessário um apoio profissional.
Quem escuta deve ter uma atitude empática de escuta activa e devolução do fundo emocional, que facilite essa narrativa e valida o seu ser e o seu sentir. Os estudos das neurociências também mostram que a escuta ativa interfere no “sistema reward do cérebro”, sistema que envolve diversas estruturas e neurotransmissores como a dopamina, que diminuem a resposta de ansiedade ao stress e aumenta a resiliência, resultando num contributo emocional positivo.
A narrativa do sofrimento e a escuta ativa dessa narrativa são importantes caminhos a fazer para mitigar o sofrimento em cada um. Ao narrar-se, num ambiente seguro, com total ausência de julgamento, a pessoa tem um marco idóneo para se explorar, compreender, organizar e integrar o sofrimento no seu eu e na sua vida, de que fazem parte a alegria, o sofrimento, a luz e a sombra – e tudo lhe dá sentido.
O Gabinete de Escuta desenvolve-se como um local de escuta ativa, onde, sendo presença, permite esse caminho único e pessoal que só o próprio pode fazer perante o sofrimento, que é também ele pessoal.
Cecília Vaz Pinto é médica há 39 anos e acreditando ontem e hoje na importância da relação médico-doente e voluntária na Associação GEscuta.
Artigo publicado no site 7Margens – https://setemargens.com/o-sofrimento-a-importancia-no-narrar-e-na-escuta/
